Resumo “Desafios da IA”

A APAD participou no painel “Os Desafios da Inteligência Artificial” inserido no 9º encontro dos Produtores Independentes de TV da APIT. O debate contou com participação de Manuel José Damásio (Lusófona), António Gomes (Gfk Metris), Paulo Santos (GEDIPE), Bruno Gaminha (GDA) e Vasco Monteiro (APAD), e moderação de Inês Lopes Gonçalves.

Uma das primeiras questões abordadas lançava a questão se deveríamos temer este avanço tecnológico que a I.A. representa no mundo, tendo Manuel José Damásio indicado que é claro que “há inúmeras vantagens” desta tecnologia, mas há também “receios e preocupações que devemos ter com o lado negativo” das I.As, referindo que, ao contrário de outros avanços tecnológicos mundiais que ocorreram em indústrias, digamos, abertas, “esta tecnologia surge de dentro de grandes multinacionais, com uma capacidade de desenvolvimento” incomparável a qualquer outro que tenhamos tido na história mundial. A tónica mais negativa, para Manuel José Damásio é o “problema gravíssimo de desinformação” e a situação inevitável de “perder empregos”. Perante a possibilidade de perda de emprego, Vasco Monteiro referiu que, do lado criativo, talvez não exista ainda um “modo de pânico” instalado. “Acho que ainda estamos a tentar perceber do lado criativo como é que estas tecnologias poderão ser integradas.”

António Gomes tomou a palavra para referir que a indústria da I.A. está como que a bater às portas de todas as indústrias e que o problema não reside nos sistemas de I.A. ditos “abertos”, que todos nós experimentamos na versão gratuita ou na versão paga, como o famoso ChatGPT. O “problema” é que há muitos sistemas (modelos, programas, aplicações) de Inteligência Artificial fechados, isto é: desenvolvidos à porta fechada, para empresas específicas, para colmatar necessidades específicas e que não são disponibilizados ao grande público. Ora estes sistemas fechados, “na grande industria estão implementados e a funcionar.” Para António Gomes, a indústria audiovisual não foge a esta regra e que haverá já players com acesso a ferramentas fechadas que utilizam a inteligência artificial de diversas formas. Por exemplo, em jeito de brincadeira, “[…] a Disney pode perfeitamente ter um modelo fechado que é capaz de escrever o guião de um episódio da série que passa ao Domingo de manhã para adolescentes, e nós estamos aqui e não fazemos ideia do que está a acontecer.”

Isto levou à primeira intervenção de Paulo Santos, que sublinhou dois dois maiores desafios da I.A. no mundo criativo: “Primeira nota: o direito de autor só pode ser atribuído a uma pessoa. Não pode ser atribuído [a uma máquina] um direito de titularidade intelectual. Para o direito de autor isto é profundamente disruptivo e traz problemas muito sérios. […] Outra questão extremamente importante: quem utiliza uma obra tem de ter autorização para a usar.” Esta segunda questão aborda a utilização de dados disponíveis online, em blogs, sites e arquivos de qualquer obra e que são injectados nos modelos de I.A. para que estes aprendam ou os analisem. Ora, se a máquina faz isto com dados estatísticos, é uma coisa… mas quando o faz com obras literárias, músicas, audiovisuais, etc, então está a utilizar a obra de terceiros para “criar” ou “construir” ou “trabalhar” sobre uma nova obra. “A máquina utiliza e não pede direito a ninguém e não passa cavaco a ninguém” e isto levanta outros problemas sérios do direito de autor. Até porque alguém lucrará muito com o que a máquina cria, sem pagar a nenhum dos terceiros em que se baseou o trabalho dos mesmos.

Bruno Gaminha entrou na conversa para referir que “muitas vezes há uma espécie de deslumbramento tecnológico em que achamos que tudo isto é um pouco inevitável… e não é.” Para Bruno Gaminha, da Gestão dos Direitos dos Artistas, a implementação desta tecnologia “dependerá também das escolhas que nós fizermos.” Um exemplo concreto? “Estes sistemas tanto permitem aumentar a capacidade, criatividade, valorizar o trabalho e reconhecer uma maior papel do ser humano, como também, se pensadas de forma diferente, permitem substituir ou desvarolizá-lo. Nós, enquanto comunidade e sociedade temos muito mais poder sobre aquilo que será a evolução destas ferramentas, do que alguma vez assumimos.”

“Estes sistemas tanto permitem aumentar a capacidade, criatividade, valorizar o trabalho e reconhecer uma maior papel do ser humano, como também, […] permitem substituir ou
desvarolizá-lo.
Bruno Gaminha, GDA

Pegando nesta ideia, António Gomes pôs também o ónus nos que consomem conteúdos (ou seja, todos nós): “Podemos aceitar ou não a criação de conteúdos audiovisuais [criados] sem intervenção humana.” Fica o desafio: notaríamos diferença? Diríamos preferir a criação humana? Seríamos contra conteúdo criado por I.A. se o mesmo nos servisse de entretenimento? Optaríamos por gastar mais numa obra humana (que tem de pagar esse trabalho) em vez de pagar menos por uma obra criada por um sistema?

E será que chegaremos mesmo aí? E será em breve? Para Vaco Monteiro, enquanto humanos contam histórias as humanos, a história em si mantém o interesse. “Quando passarmos a ser máquinas a contar historias a humanos, alguma coisa se vai perder aqui.”, referindo também que na mais recente greve dos argumentistas nos EUA, foram acautelados muitos direitos, principalmente em relação às Inteligências Artificiais, mas uma das coisas que se assegurou foi “a autoria humana da ideia.” Ou seja: uma máquina não tem a ideia para um filme do nada. Será sempre necessário um criador, um autor da ideia, a pessoa que escreve o “prompt” para que a máquina crie o que quiser com base nisso. E é essa pessoa, esse humano o detentor dos direitos, mesmo que o guião acabe a ser escrito por uma máquina. Para Vasco Monteiro, a ideia de que a máquina pode sonhar um argumento do nada, não existe. Pelo menos, não ainda, até porque a arte é também uma interpretação, uma transformação do que é vivido e experenciado, uma extrapolação do que vemos e/ou vivemos. E, nesse aspecto, estamos ainda no campo “humano”, uma vez que essa capacidade de viver, interpretar e traduzir vidas em arte, independentemente do meio, “é algo intrinsecamente humano”.

No entanto, Bruno Gaminha referiu que os atuais modelos de I.A. a que nos referimos quando falamos neste tipo de desafios e conferências, são modelos que não são feitos para criar, mas sim para estudar um conjunto abismal de dados e reconhecer padrões. Posto isto, “há uma parte do audiovisual que é muito baseada em cima dos padrões, de repetir formulas de sucesso e bem sucedidas e nesse ponto, [a máquina poderá ser capaz de replicar].”

“[Esta] capacidade de viver, interpretar e traduzir vidas em arte […] é algo intrinsecamente humano”.
Vasco Monteiro, APAD

Para Manuel José Damásio, um dos maiores desafios não é se o ser humano vai ou não continuar a criar, mas sim se “o que vai ser criado [se] torna irrelevante”. Se por um lado as I.A.s trazem também a parte boa à indústria audiovisual com “aquela palavra que todo o economista adora: eficiência… e até podemos cortar algumas gorduras de recursos humanos”, também traz o seu lado mau: a proliferação de conteúdos, a  criação de conteudos a uma velocidade sem precedentes e sem sabermos o que poderá daí advir. Para Manuel José Damásio uma das respostas possíveis é: regulamentação. “Eu acredito sinceramente que é possível regulamentar este mercado. E que a Europa tem para aí 7 meses para o fazer.”

Para Paulo Santos, é também importante saber o que farão os EUA, uma vez que a China se juntou à União Europeia na iniciativa de regulamentação. Na opinião do vice-presidente da Associação para a Gestão de Direitos de Autor, Produtores e Editores, a Europa fez uma analise de risco da IA e a  regulamentação é a tentativa de minimizar os efeitos desses riscos. A U.E. está na linha da frente da regulamentação, mas é uma tarefa bastante complexa. Se os pontos relacionados com autoria e direitos de autor não forem minimamente controlados, poderá estar muita coisa em jogo. Mesmo a opção do “opt-out” que protege as suas obras de servirem como dados para sistemas de I.A. também envolve custos para o autor que não quer que a sua obra seja usada por máquinas.

“O desafio dos produtores será manterem a relevância.”
Manuel José Damássio (Lusófona)

António Gomes manteve a tónica na importância dos dados: se as máquinas são treinadas com dados, dados equivalem a dinheiro. Logo, quem os tem, vende-os; quem não os tem e precisa deles, paga-os. Pegando numa questão levantada por Inês Lopes Gonçalves sobre a utilização de modelos de I.A. na definição de perfis de público, por exemplo, e na análise de audiências, António Gomes referiu a extrema vantagem competitiva que seria uma empresa ou produtora desenvolver um sistema fechado que tivesse esses dados para analisar. Para António Gomes não há dúvidas: se houvesse esse sistema, alimentado por dados, ele  poderia descobrir algum padrão ou conclusões fantásticas e quem detivesse esse sistema teria uma enorme vantagem competitiva.

Já a fechar, Manuel José Damásio retomou a questão do “desafio da relevância”, referindo um estudo  recente onde era referido que seriam necessários 350 anos para ver todas as horas de conteúdo europeu presente nas duas maiores plataformas de streaming. A tirada “Só por aqui, já não vamos lá.” suscitou risos na sala. Como é que uma produção, uma história, um autor se torna relevante num mundo onde cada vez se produz mais, mais rápido e se tem acesso a cada vez mais coisas? “O desafio dos produtores será manterem a relevância.”

No final houve ainda algum tempo para falar dos estereótipos perpetuados por estes sistemas e para referir o famoso “alinhamento” defendido por académicos e cientistas quando se fala de I.A. e que se torna essencial no ensinamento e aprendizagem destes sistemas tecnológicos.

Foi uma conversa interessante, que poderia durar a tarde inteira, onde se referiram alguns desafios. Para os argumentistas, destacaríamos três áreas onde podemos e devemos estar mais atentos:
– relevância – como criar histórias e produtos audiovisuais relevantes no meio da enxurrada de conteúdos em que vivemos… e que tende a piorar;
– direitos – como proteger os nossos direitos autorais, estar a par de possíveis alterações legais e como agir em caso de violação dos mesmos;
– protecção – se é verdade que a criação de produtos únicos, de autor, independentes ou criativos estará reservado à mente humana durante muito tempo, também é verdade que muitos dos conteúdos audiovisuais que consumimos hoje em dia são formatados e seguem várias regras instituídas. Nesses casos, pela natureza padronizada destes conteúdos, a introdução de I.As. tornar-se-á mais fácil (e apetecível, porque simboliza uma economia em recursos humanos). Talvez fosse positivo não temermos estas ferramentas, mas estarmos atentos e até aprendermos a trabalhar com elas: saber de que forma as poderíamos incorporar no nosso trabalho poderia ser benéfico em termos laborais, no futuro.

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